segunda-feira, 27 de junho de 2011

carne viva

As coisas mudaram. As pessoas mudam. Por fora e por dentro. Meu deus, por dentro. E como. O estômago e o intestino e todas as tripas se reviram parecendo querer reacomodar-se, como se a gente pudesse reconfigurar as entranhas. Por que o estômago não vem antes do coração, oras? Quem não digere, fere-se na espinha do sentimento. E coração não digere, só se lambuza, se empapuça, tem gula, gana, desespero. Justo ali em cima um órgão tão inconsequente? E o cérebro, na cabeça. Cabeça deveria é desencaixar. Um dia, se sai sem cabeça, outro, com - dependendo do estado de humor. Não me suporto de mau humor. Não me suporto triste. Não suporto pensar na dor das tripas se contorcendo. Descabeçada, eu faria a festa com as tripas sem pensar na dor. Eu me doeria inteira, me doeria por um time de corações despedaçados e tristes. Botaria a cabeça no lugar só pra descer até o Porto da Barra e ver o pôr-do-sol numa tarde de domingo. Ou para me deliciar com um prato de moqueca de mariscada. Ou então para me perder nos abraços e beijos de um rapaz bonito [tiraria a cabeça depois que ele fosse embora]. Me deliciaria lendo e ouvindo poemas - recitados por uma voz masculina, grave, ou pela minha própria, rebatendo na parede do quarto. Sem cabeça, eu pediria o único abraço que naquele instante me envolveria. Afogaria as narinas no perfume novo de ombros e um pescoço novos, abraçada por uma força nova, acariciada por uma pele nova, sob um olhar novo, suspiros e respiros novos. Se pudesse escolher, teria então duas, três, quatro cabeças. Seria uma Hidra, mas de hálito quente e tão, mas tão pavoroso que não se imaginaria viver sem ele. Apenas meu coração se regeneraria. Seus desatinos se extinguiriam para que viessem outros. Muitos outros. Tantos outros. Dentro, fora, do avesso. Quero soprar as espinhas doloridas dos trinta anos, que eclodem na pele e vulcanizam e expulsam células e pus, e coisas lá de dentro. Por quê? Nostalgia odiosa dos quinze. Idade triste, perdida, confusa, perturbadora. Que é ter sede de vida aos quinze?  A gente muda por fora. Muda por dentro. Transforma-se. A pele ganhas novos tons, marcas, dobras, manchas. O corpo ganha viço e dores. Seduz e afasta. Afaga e acena. O vulcão, uma espinha do mundo cujo fluido toma conta dos céus, é muito menor que essa erupção em pele alva. Esse inchaço, essa brutalidade vermelha com que brota o que vem de dentro. Pra quê? A gente se renova. A gente se decompõe, colore-se e se desbota. Toca tamborim, mansinho, solado, assim enquanto canto a estrofe do meu samba. Despedaço as unhas, sem esmalte há semanas. Desfio uma a uma, faço calos nos dedos, canto chorosa. Ouço Chico, penso no Chile. O vulcão, as erupções da minha pele jovem-adulta, a nostalgia dos quinze. Quinze minutos de fama. Quinze motivos, quinze sensações, quinze desculpas, quinze amores, quinze decepções [vezes quinze]. Quinze erros, quinze acertos. Quinze contradições. Quinze cenas inesquecíveis, quinze escolhas difíceis. Quinze quilos, quinze vícios. Quinze anos. A gente muda, por fora e por dentro. Erupções na pele, na carne. A cabeça ora no lugar, ora fora. Ora Hidra, ora ira. Não me suporto triste, nem pensar na dor das tripas se contorcendo. Mas torço e me retorço, despedaço-me, desfio as unhas, arranco pétala a pétala aquelas secas e murchas, e os fios de cabelos brancos. Doa o que doer. Renasço, revivo, sobrevivo. O coração faz dieta, mas sussurra, baixinho, insistente, irritantemente teimoso: bata à porta.

2 comentários:

Alisson da Hora disse...

Guardando as devidas proporções, estou assim, como seu texto...a minha prosa tá quieta, guardada e minha poesia sai em doses homeopáticas...

lindo, tudo...

besos...

Débora Didonê disse...

Obrigada, querido! Ah, essa digestão indigesta.