terça-feira, 27 de janeiro de 2009

No trem em movimento

Ela queria se mover no trem. Ela, sem nome. Procurava um deslocamento, um encontro. Queria entender porque se deslocava tanto e sentia, ao fim de cada viagem, vontade de seguir adiante. Como se estivesse à procura de. Observava as oliveiras nos arredores. Sul da Itália. Sozinha, sentindo-se independente no trem. Oliveiras. Centenas delas ao redor. Ela não se reconhecia. Desconhecia-se feliz. Inteira. Plena. Os acontecimentos todos faziam-na sentir-se outra. E é como se naquele trem ela pudesse buscar-se e dar a si um novo nome. Ou como se seu nome ganhasse gosto, textura, perfume.

Um rapaz sentou-se no banco virado de frente para o dela. Bonito. Cabelos lisos, castanhos. Um rapaz italiano. Não olharia para ela. Ela pensou isso. Ele guardou a mochila no maleiro logo acima. Sentou-se e não olhou para ela. Mesmo que olhasse, fingia-se desinteressado. Ela pensava isso. As oliveiras eram muitas. Se o cenário se esgotava, as oliveiras permaneciam. Ela, com nome, gosto, perfume e textura, pensava em italiano. Descrevia as paisagens, imaginava-se contando para alguém sobre a viagem. Sacou a câmera fotográfica. Foram os segundos em que as oliveiras deram trégua. Deixaram-se sobrepor por um muro. Uma cidade ocupou o cenário bucólico das campanhas.

Nem tão indiferente assim, o rapaz perguntou de onde ela era. Foi a câmera. Ela pensou isso. Ou foram o gosto, a textura e o perfume do meu nome? Conversou com ela. Perguntou seu nome. O que fazia, por que usava uma câmera. A trabalho ou a passeio? Ela disse o nome. Disse tudo e não disse quase nada. Disse sem ter certeza. O motivo de estar naquele trem era a tentativa enganosa de mover-se de si mesma. Ou de se encontrar. Isso ela não disse. Ela esqueceu o nome do rapaz. Não havia perfume, nem gosto, nem textura.

O rapaz era bonito, tinha cabelos lisos. Falava e olhava interessado. Apressava-se na conversa, na evolução do assunto, já que o trem movia-o finalmente ao destino esperado. Por ele. Não dava tempo para entender o que ela tanto buscava. Não dava tempo. Ela dizia, num parco italiano, de sua viagem, de suas buscas. “È sposata?”. Foi bruscamente interrompida. A única pergunta que reverberava na cabeça do jovem bonito de cabelos lisos e castanhos. O pensamento único que instigou o jovem, na verdade, tímido que, provavelmente, procurava uma namorada. Procurava? Um futuro advogado do sul da Itália. Morador de uma cidade pequena como o quê. Na qual o ato de movimentar-se era novidade.

Se ela realmente casasse com o aspirante a advogado, toda a cidade saberia. A cerimônia seria feita na igreja da praça principal, a única do lugarejo. Os pais do rapaz a fariam comer muito para que ficasse rechonchuda. Esperava ele que ela aceitasse sorrateiramente o pedido? O trem chegava ao destino dele. Ele retirou a mochila do maleiro e se despediu. Não pediu telefone, não passou um número. Foi embora. Ela não esperava nada. Não entendia. Talvez fosse estranho para aquele rapaz quase advogado dos cabelos castanhos lisos ver uma garota estrangeira sozinha em um trem, com uma câmera fotográfica. Sem ninguém. Talvez ele nunca entendesse que ela era ainda mais do que ela mesma. Que o mundo a preenchia e só era possível carregá-lo em movimento. Que nomes, lugares, profissões, casamentos e cidades não faziam sentido sem um gosto, uma textura, um perfume, um encantamento.

Um comentário:

SRTA. LÓRI CAPITU disse...

que lindo, que lindo, que sensível.
pés no chão enquanto o trem se move? não. pés no alto. nas nuvens, na tessitura fina e transparente do ar, do mar, dos sonhos e dos castanhos.

já senti igual, ando sentido.
ando. em vez de ficar soterrada no solo árido de buscas vazias dos tais pés no chão.

adelante, compañera. hasta la victoria, siempre!