sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Passando a vida a limpo

--
Fim e início de ano é sempre tempo de fazer a limpa no armário. Engraçado. Tudo o que fica lá vira coisa do passado. Cadernos com anotações, envelopes amarrotados com fotografias, boletins da escola, agendas, livros de receita, material da faculdade, cartões de aniversário, Páscoa e Natal. E tudo o que é do passado acaba parando no armário. Ao remexer nessa coleção de velharias e escolher o que iria para o lixo, fiz uma leitura dinâmica de tudo que encontrei, dei uma olhada rápida nas letrinhas. Logo redescobri minha história estampada em textos e desenhos de criança e fotos antigas com amigos e familiares.
É preciso, sim, desfazer-se de papéis antigos e mofados, parar de acumular caixotes e ter mais critério para guardar lembranças. Mas se não fosse o lixo do armário, talvez não pararíamos para fazer a limpa. E não espalharíamos tudo no chão, deslumbrados com objetos e figuras antigas. Naquelas portinhas lá de cima do guarda-roupa do quarto da minha mãe ficaram os álbuns de infância. Adorava vê-los quando era pequena. Lia todas as legendas feitas por minha mãe em um pedaço de papel, colocado abaixo de cada foto, contando nossas histórias (minhas e do meu irmão) em primeira pessoa, como se nós fôssemos os narradores. Depois de uma bela limpa, os álbuns foram tão bem guardados que passaram anos fechados. Nunca mais parei para vê-los. Nesse Natal, ao procurar fotos antigas da família, revi os álbuns e lembrei de quando brincava com meu irmão na caixinha de areia da casa da nossa avó em Santo Ângelo (RS), a cidade onde nascemos. Não morávamos mais lá, mas íamos com nossos pais todos os anos para reencontrar a família, incluindo avós e bisavós.

Limpando o armário do meu antigo quarto, percebo o quanto meu passado é parecido com os dos meus pais. No meio de livros e de outros papéis, encontrei poesias que meu pai recortava do jornal e letras de música que anotava à mão ou na máquina de escrever. Depois, encontrei um diário, desses de adolescente, em que eu fazia a mesma coisa. Encontrei cadernos cheios de desenho, de quando minha mãe era professora. E lá estavam, em pastas sobrepostas, meus cadernos coloridos e meus trabalhos da escola, também desenhados.

Dessa vez, abri mão de certas coisas que não me servem mais, como as fitas de música, minha amada coleção de papéis de carta (tudo bem, elegi algumas para escrever aos amigos queridos), alguns desenhos feitos naquelas tardes de chuva que me impediam de correr na rua -- ou quando, aos 13 anos, já não via muita diversão no esconde-esconde e nas bonecas.

Guardei um caderno cheio de textos apaixonados. Cada novo amor merecia páginas e páginas de declaração. Ah! Meus amores platônicos da adolescência. Quem sabe isso um dia não vira uma peça de teatro? Um livro de crônicas? A inspiração de um personagem para um conto? Sei lá, deu vontade de guardar. Guardei minhas fotos da faculdade. Tinha orgulho do meu instinto de repórter fotográfica. Mas só sobraram algumas imagens mal feitas e negativos que não me interessavam tanto. Tudo porque certa vez troquei o armário de casa pelo da faculdade para guardar meu material fotográfico. Quando a faculdade esteve em reforma e a parede do corredor foi destruída, o armário foi arrombado e jogaram fora minhas ampliações e meus negativos preferidos. Só sobraram as do armário de casa para contar a história. Bendito seja!

As fotos PB eram tão comuns na época dos meus pais, e até de quando eu e meu irmão éramos crianças. Foram para mim uma espécie de paixão na faculdade. Guardei também os roteiros das peças de teatro que fiz na escola. Eu e meu grupo criamos e montamos quatro espetáculos. Encontrei rascunhos dos textos que eu criava, ensaios de falas, anotações de cena, relatos de amigos que assistiam aos espetáculos e até matérias do jornal da cidade sobre o grupo escolar de teatro.

Encontrei recortes de jornal de quando passei no vestibular. Um texto dizia assim: "meia hora depois de descobrir que foi aprovada, Débora foi coberta de ovos pelas amigas". Não foi muito bom lembrar do cheiro do ovo podre que jogaram na minha cabeça. Mas foi maravilhoso lembrar da emoção de conquistar minha vaga na universidade. Foi aí que comecei a abandonar lembranças nos armários da minha mãe. Outras carreguei comigo, mas acabaram voltando para o armário materno quando mudei para São Paulo. E ali ficaram. Como agora minha mãe pretende se desfazer do armário do meu ex-quarto, precisei fazer outra limpa. Não à toa, deparei com lembranças que dão sustento aos caminhos que escolhi seguir.

Faz pouco, minha mãe se queixava. "Por que guardamos tanto lixo? Por que sempre guardamos tudo isso para ter que limpar, limpar e limpar?". Não disse nada. Estava concentrada escrevendo esse texto. Mas estou convencida de que guardar o lixo do passado é totalmente proposital. Deixamos no armário apenas o que um dia sabemos que vamos rever e que vai trazer lembranças à tona. Parece uma pena permitir que minha mãe jogue fora minhas primeiras garatujas (se ela tiver coragem!), mas elas já me trouxeram as alegrias necessárias. Os roteiros de teatro da escola ainda me emocionam. Quero relê-los. As fotos de amigos que nunca mais vi ainda são importantes. Quero gravar seus rostinhos para um dia cruzar com eles por aí, quem sabe. As fotos da faculdade ainda fazem parte de uma história com muitos capítulos pela frente.

É isso aí, as coisas velhas do armário são como a voz grave dos filmes infantis que diz: "Era uma vez...". Mas falam de uma história real. De uma vida real. Falam de mim. E me ajudam a guardar na memória, sem cheiro de mofo, coisas boas de lembrar. A vida continua, os armários mudam e as memórias crescem. O que será que me espera na próxima limpa?
--

Um comentário:

retrolectro disse...

FOLHAS AMARELAS

Passei a tarde folheando papéis
rasgando cartas
respirando nicotina
e revendo fotos espalhadas
na confusão das gavetas.

Um prego perdido
perfurou meu dedo:
choveu uma gota
exatamente
no seu rosto impresso.

(eu.)