quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Segundas-feiras e o cachorro linguarudo

Queria gozar em toda tarde de segunda-feira, feito a vizinha ao lado. Gozar de gozo e da vida. Se tem amor o gozo da vizinha, não sei, parece sincero. Dessa vez, enquanto ouço seus múltiplos gritos de prazer, ligo para a operadora do celular. Ohhhhh! Ahhhhh! Uhhhh! Procuro não me deprimir com o atendente robotizado, sem ternura, sem afeto, cujas falas estão todas estampadas em um manual de procedimentos da empresa. Os seios dóem, não sei ao certo se porque a menstruação se foi ou está por vir, já que o mês de pausa no anticoncepcional esculhambou com os mecanismos da renovação uterina. Deixa pra lá, esquece a bateção do vizinho do andar de cima às 23 horas - ele não goza, coitado - porque ou você briga com o vizinho ou você briga com o vizinho [ignorantes não dialogam. e dialogar é muito mais fino que conversar]. Se juntar todas as insatisfações com o mundo numa tarde de segunda-feira, sua vida se resume num fracasso. Você, um indivíduo misantropo, e um a mais na tropa de cretinos sem noção. Na segunda-feira à tarde também tem a cena piegas da citação over da propaganda de margarina em que o cachorro a recebe pulando e sacudindo a língua quando você abre a porta de casa. Você está cansada, pensando em torcer o pescocinho da criatura que atrasou seu pagamento mas, para o cão, nada mais importa do que você. Para o cão, nada mais importa. Para o cão. O cão. Você pega a coleira e leva-o para passear em pleno pôr-do-sol. O sol está um espetáculo. O cão não está nem aí pro sol. Numa segunda-feira, você se indigna com a canalhice dos candidatos à cargos políticos e vem à tona a sensação de não pertencer à humanindade como se a humanidade fosse feita dessa sujeira toda. Lembra imediatamente de um amigo falando das cores vivas e sujas de Recife e pensa que não, nem toda sujeira é feia. Já teve tarde de segunda-feira em que você se imaginou no Nordeste, e outras em que você esteve lá. Você puxou o zíper, riscou o papel, enviou um e-mail, tuitou cinco pensamentos e trechos de poemas, comeu um pedaço de cuca com café. Grande coisa. Grande mesmo.

Você pula um parágrafo quando não parece precisar. Você digita, digita, digita. E você quer que tudo faça sentido, cada letrinha, cada ponto, cada vírgula. Vírgula. Pontos, letrinhas e vírgulas não latem e não mostram a língua se você não quiser que o façam. Mas podem correr pra pegar o osso, dar três voltas ao redor de você e se fingir de mortas. Fazem isso quase sempre, ultimamente. Nem todo sentido faz sentido exatamente. Cacofonia atrás de cacofonia, uma após a outra. Redundâncias. Então uma tarde de segunda-feira pode ser bem normal, ou completamente diferente de tudo o que você já conheceu em uma tarde de segunda-feira. O entregador do cartão de crédito chama pelo interfone e avisa para descer rápido porque está com pressa. A moça do IBGE sobe para aplicar o censo. E quem precisava de [bom] censo era o entregador do cartão. Sua meditação é bruscamente interrompida pelo interfone [sempre ele], tocado pela testemunha de Geová [você escreveu com "G" num e-mail e, à merda, a pronúncia é a mesma] interessada em saber o que prega sua religião quando você se diz católica. Pegue todos os seus pregos e pregue onde quiser, menos aqui. "Não, obrigada" é a melhor frase para afastar inconvenientes, de vendedores de porta em porta a telemarketing e instituições sociais corretíssimas que telefonam pedindo uma doação simbólica cobrada na conta do seu telefone. Blá, blá, blá, mas... Não, obrigada Não, obrigada Não, obrigada a dizer não, obrigada.

Você tem motivos de sobra para sentir raiva da própria existência em uma tarde de segunda-feira. Sequer sabe justificar porque nessa tarde. Por que todo mundo xinga segunda-feira se não gosta de domingo? Mentira, domingo não é legal. Sábado seria tão útil quanto domingo. Sai dessa, cola no Twitter; não no Faustão. De uma tela pra outra caminha a humanidade. Na segunda-feira você dá o primeiro passo da semana e aí está o medo. Bingo. O primeiro passo será sempre o primeiro. Depois dele vem todo o resto. O primeiro gole, o primeiro suspiro, o primeiro cuspe, o primeiro "oi", o primeiro "tchau" talvez seja o último. Pode ser que hoje também seja segunda-feira, porque há sempre um ponto de partida, um novo, primeiro, único, insubstituível ponto de partida. Que pode ser o último. Se o 31 de dezembro cair numa segunda-feira, fará todas as cartomantes felizes. Mas o útero não liga pra segundas-feiras. Nem seu cachorro linguarudo. Hoje pode ser sua segunda-feira e você nem imagina. Preocupa-se em dar ao último parágrafo do texto um tamanho parecido com o dos anteriores. Nem escritora você é, nem tempo você tem direito para escrever. Mas você sempre começa. Seus pontos, letrinhas e vírgulas não fazem sentido algum, mas você goza de todos eles. Eles de você, você deles. E assim sucessivamente.

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