terça-feira, 22 de abril de 2008

] Pacto com o mundo [

Ela é pequena. Daquelas de corpo miúdo -- um abraço mais forte parece capaz de quebrá-la, dizem seus amigos. Pequena e intensa, uma menina-mulher. De dentro dela, uma força a põe em contato com um mundo fantástico e invisível, mas palpável. O mundo a apalpa, aliás. O mundo a pega de jeito. Firme e forte. A coloca contra a parede, encosta os lábios nas suas orelhas frias e rosadas e suspira em seus ouvidos palavras devassas. E ela gosta. Porque deixou de ter pudor pela vida que gritava lá fora – e agora grita dentro e fora. É como se estivesse em sintonia com uma freqüência meio divina, meio carnal. Seu nome agora é EU. No sentido de amor próprio, e não egoísta -- ou de um egoísmo do bem, talvez. Porque o amor cada vez mais declarado que ela tem por si mesma a faz entender que pode amar com profundidade. Mesmo sem ser correspondida.

Ela vê um filme sobre Wilson Simonal. Sente amor por ele nos primeiros minutos do vídeo. É um amor-tesão-misturado com um sentimento fraterno. Impressiona-se com o furacão de felicidade daquele homem, cujo alimento era o canto. Ele comia as canções. Com mordidas fortes, arrancava nacos das melodias e mastigava com vontade, lambuzando-se todo. Ela quer poder beijar aqueles lábios carnudos e melados de música. Simona, como o chamavam, era sorridente, cheio de dentes e tinha uma boca enorme – bastava a abrir para que um vozeirão tomasse conta dos vinte e três mil metros quadrados adiante – e de tudo que estava acima, abaixo e no entorno disso. Aquilo – o que se pode usar como referência às cantorias vertiginosas do homem -- vinha de dentro, era sublime. Era o rei da cocada preta (da melhor qualidade). Em coro, fãs do Simona entoam “meu limão, meu limoeiro, meu pé de jacarandá” na tela do cinema, estampando um sorriso no rosto da menina-mulher. O amor brota de uma relação meio ficção-meio verdade.

Mas a malícia impetuosa da voz de Simona, do jeitão malandro-paquerador-sedutor de povo, de gente, de mulher, de Brasil, de MASSA, essa malícia não foi imperativa quando o rei da cocada preta quis enrolar um jornalista. Não importava o duro que ele havia dado. Ele havia dito que era amigo dos caras (os caras do mal, diga-se). Para o jornalista e para todos os colegas de trabalho e todos os veículos de tela-de folha-de tinta-de páginas-de som, Simona era o MELHOR amigo dos caras do mal. Virou um ícone do mal. O filho do filho do filho do diabo. E ela continua a amá-lo.

Simona morreu triste e só. Velho, magro, doente. Parou de cantar e passou a beber. Tinha mulher e filhos e não tinha nada. Não podia mais cantar. O ícone do mal, o crioulo que ficou rico sendo músico, não merecia subir em palco algum para distribuir felicidade, nem cantar com cantor algum que prezasse pela sensatez pseudo-humana de transformar esse furacão de alegria no símbolo de tudo o que dava errado no lugar onde vivia. Tomada por um choro incontrolável, com as lágrimas brotando dos olhos, ela se enxuga enquanto retira os óculos embaçados. Sente vergonha de ser jornalista, a raça que suplantou a vida de um homem feliz-porque-cantava com rajadas – sim, manifestações súbitas e intensas – feitas de palavras desmedidas. Ele passou a ser o pobre coitado. Pobre filho da mãe. E ela o ama, ainda assim.

As cenas do filme fazem com que a relação entre ela e o mundo ganhe viço. Em lágrimas, ela se põe nua diante do mundo e, chorando, sorri por senti-lo como nunca. Sente-se triste, porém, ao ver tanta gente sisuda com a vida – com medo do choro e da sensibilidade nele implícita --, cujo vício de viver são falsas emoções inquebrantáveis. Em estado de êxtase com o mundo, os dias da pequena passam a ser tão ou mais intensos que ela mesma. Há uma disputa entre o que vibra lá fora e dentro dela, o que entra e o que sai, o que ela libera ou dá e o que penetra nela. As mentiras medrosas e as verdades corajosas. Os lugares comuns que dão lugar aos incomuns e as frases feitas que se desfazem. Tudo é possível para a menina-mulher, agora mulher e menina. Ela não se preocupa em abrandar a disputa dos sentimentos que vêm e vão. Ela sente.

Nada é combinado, nada é planejado. A não ser a disponibilidade que ela tem para sentir. E a disponibilidade que tem para o mundo. Saindo de uma loja, anda pela calçada de cabeça baixa, concentrando-se na canção de Simona. Meu limão, meu limoeiro, meu pé de jacarandá. Leve, solta, ela deixa rolar. A cantoria, a calçada, a cabeça baixa e os olhos na melodia daquele homem furacão. Em segundos, que é o tempo sentido por ela e pelo mundo, ela ergue o rosto e se depara com o filho de Simona -- cantarolando e caminhando no sentido contrário ao dela. Como em um pacto de olhos -- comprometidos com acasos imbuídos de significados meio verdade-meio transcendentes --, os olhos dela e os dele se cruzam no exato milésimo de segundo em que ela pronuncia jacarandá. Os acasos nunca foram acasos. E agora fazem cócegas em sua nuca. Os olhos dele a fitam, os dela, arregalam. Paralisa, vira-se para trás e acompanha-o indo embora. Arrebatada pela imensidão de sentimentos que o mundo torna a oferecer, ela continua a caminhar, permite que um espaço interno se encha de ternura, sorri sem um motivo aparente, deixa os olhos se encherem de lágrimas e sente-se ainda mais viva.

3 comentários:

Meire Cavalcante disse...

A menina está viva e merece estar. A menina sorri também porque merece. Fico feliz de ver essa flor cheia de perfume e cor desabrochar. Case-se com a alegria de Simona, já que ele mesmo se foi. Passe a lua-de-mel no paraíso de paz que escolhestes habitar. More no seu apê aconchegante, conquista tua partilhada pelo anjo da loja de móveis. Trabalhe no que ama. Dê à luz teus projetos. E, no dia em que te entregares ao plano superior, sorria orgulhosa. Sugestão bem simples para a vida da menina-mulher. Beijo.

SRTA. LÓRI CAPITU disse...

Que maravilha é essa sensação de desprender a alma da teia de obrigações-inexatas-insensatas-da-fábrica-de-bolinhos-embrulhadinhos (e emburradinhos) na qual se tornou nossa sociedade. Ufa, ufa. Quero meu limão, do limoeiro, para a caipirinha mais faceira que me possa inspirar. E aí, numa virada de rua, numa esquina mais charmosa, uma epifania: ele. E não precisa mais dizer nada.
Parabéns, adorei as sensações que o texto registra.

Débora Didonê disse...

Que venham a vida e suas doces caipirinhas. Sensação linda é a de ter com quem dividir tais sentimentos. Obrigada pelas lindas palavras, meninas!