quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

perdidos & achados

encontrei uma loja de objetos antigos. curiosamente, era tudo muito novo. até o cheiro de mofo, de papel velho, de caixas já passadas de mãos em mãos. as cores desgastadas, as manchas do tempo, os utensílios equilibrados uns sobre os outros... o campo de visão ficou abarrotado de tranqueiras; as pupilas, dilatadas. entrei. passei os olhos nos livros sobre a mesa, ao lado da máquina de escrever com teclas cinzas [lembrei-me de meu pai datilografando com sua super máquina de escrever automática no escritório de advocacia quando eu era criança], ao lado de um armário com caixas cheias de objetos pessoais esquecidos. doados? jogados? desprezados? vendidos? uma pilha de cartões postais antigos se acomodava revirada em um caixote de madeira. muitos, escritos e selados. com nome de remetente e destinatário. 'Edna, Saudades. Estou sentindo falta de você e das fofocas da vida dos outros que a gente falava. Na próxima semana, se Deus quiser, eu vou conhecer essa praia do postal, não é linda? 1000 Beijinhos, Conceição' escolhi três postais. este foi dado à minha mãe. um cartão um dia escolhido por outro alguém. carregado de uma alegria particular. rodou quilômetros. quantos? foi pensado, desenhado, impresso, cortado. chegou à loja como produto - em branco, havia centenas dele por aí. foi escrito com cuidadosa caligrafia, tocado, usado como abanador. viajou de avião, na bolsa do carteiro, andou de bicicleta e foi jogado portão adentro. foi encontrado no jardim, no meio da grama, lido e relido, guardado na gaveta por semanas, meses, anos. retirado numa limpeza, já não se via motivo para guardá-lo. conceição falou mal de mim para shirley, vagabunda-fofoqueira. sabe-se lá. edna morreu, sua irmã vendeu tudo o que pode para pagar o caixão - até os postais usados que encontrou na casa da falecida.  nada, o cartão foi deixado na gaveta de um armário vendido para a loja de velharias. percebe a história que pode ter um postal? preferi pensar na mensagem feliz ali estampada que se perdeu no tempo. reciclei-a. dei-lhe novo destinatário. novo envelope. edna perdurou. conceição também. elas duas, que falavam das vizinhas, dependuradas nas janelas de suas casas geminadas. carreguei também um cartão vindo de taj mahal. outro de portugal. queria postar todos de novo, ressuscitar até as mais tristes palavras. 'ainda espero receber um sinal seu'. ao lado do mini-depósito de postais havia uma caixa de fotos três por quatro. um baralho de caras enterradas em outras, de frente, de costas, no fundo azul e no branco. face a face com o esquecimento, encerradas no tempo congelado de um clic, esquecidas pelos próprios donos, vendidas, doadas, trocadas, arrancadas do érregê perdido. a montanha de postais e o emaranhado de três por quatro eram o retrato do tempo. ative-me na loja confabulando sobre as histórias que navegavam etéreas pela atmosfera daquela casa antiga. paixões fogosas, casamentos arranjados, assassinatos, amores não correspondidos... e o tempo. o passado. a lembrança. a cicatriz da ferida. a marca. e também o desgaste. o desaparecimento. o esquecimento. o senhor dono dali fazia isso de ganhar dinheiro com quem aniquilava o esquecimento. sobrevivia de produtos perdidos, mas achados.

2 comentários:

Alisson da Hora disse...

"Verde-mofo é a casa do esquecimento." - Paul Celan

e as lembranças sobrevivem. O passado resiste. A memória é uma espada ensanguentada... quase sempre esquecer é impossível...como querer esquecer... e a gente se perde e se acha, ao infinito...

---- / / ---- disse...

Um dia desses entrei num sêbo e comprei um livro, alguns dias depois quando eu o abri, encontrei lá uma declaração de amor, de um moço mui apaixonado por uma moça, "Esse livro é uma manifestação do nosso amor, que seja eterno." era algo do tipo e com um: te amarei para sempre no final. Bem a moça, chamada Syl começou o livro a todo pique, imagino sempre ela fazendo a cara de surpresa, a felicidade de receber algo novinho (quando ela ganhou devia ser novo) um livro de umas 700 páginas Sartre falando sobre O SER E O NADA, ela não se conteve, (sempre imagino isso) começou a folhear, e naquela mesma noite, começou a ler, encontrou algumas dificuldades, mas foi em frente, começou a rabiscá-lo, enchê-lo de anotações, até aí tudo bem... depois de umas 40 páginas, ela começou a parar, até cessar totalmente de fazer anotações, e o livro acabou sendo vendido. Sei que ela pode ter lido todo o livro e vendido porque é um livro que dá um bom dinheiro no sebo e claro ela pode ter começado a fazer anotações num caderno, mas... prefiro pensar que ela, desistiu de ler, terminou o namoro e um dia numa limpeza na casa por extensão em sua vida, o livro foi vendido. Ah.. adorei tua volta!